FOI BONITA A FESTA, PÁ.
Enfim, Chico Buarque está com Camões! O encontro aconteceu, na segunda-feira, 24/04, em Sintra, Portugal, com atraso de quatro anos, devido a recusa do ex-presidente brasileiro de assinar o diploma da premiação. Sobre a entrega do Camões a Chico, o ex-governante do Brasil teria dito, em tom de deboche, “até 2026 entregarei”.
Desde 1989, quando foi criado o Prêmio Camões para reconhecer a importância do conjunto da obra de autores da língua portuguesa, em razão do enriquecimento que ela proporciona ao patrimônio literário e cultural do idioma, 33 escritores, entre eles os brasileiros João Cabral, Ferreira Goulart e Jorge Amado, já o receberam. Chico Buarque foi agraciado em 2019. O valor do prêmio só recebido agora é de cem mil euros, pago metade pelo Governo Português e metade pelo Governo Brasileiro.
Emocionado, Chico Buarque ao discursar lembrou das orientações recebidas do seu pai, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, que revisava seus primeiros escritos e indicava leituras caso ele optasse pela carreira literária. Lembrou também do apoio que recebeu dele quando se voltou para a música popular. E é como compositor popular que gosta de ser reconhecido, no Brasil, disse o poeta. Já em Portugal, prefere ser lembrado “como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim”.
Em um dos trechos mais bonitos e significativos da sua fala, quando apresentava suas origens, disse: “como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias o sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco”. Não lembro de ter lido ou ouvido, nos últimos tempos, palavras que retratem tão bem parte do que somos. E foi embalada por elas que entrei em um desvario poético e imaginei um diálogo entre trechos das composições do poeta brasileiro e fragmentos dos sonetos do poeta português.
– CHICO: Eu queria estar na festa, pá, com a tua gente e colher pessoalmente uma flor no teu jardim.
– CAMÕES: tinha prometido o vosso alto destino esta vitória… por virtude do muito imaginar; não tenho, logo, mais que desejar.
– CHICO: Eu fiz uma tese, eu li num tratado. Está computado nos dados oficiais. Mas se … o calendário nos contrariar. Mas se o destino insistir em nos separar…
– CAMÕES: É tudo quanto sinto, um desconcerto; da alma um fogo me sai, da vista um rio; agora espero, agora desconfio, agora desvario… (Mas não vos preocupeis), estando em terra, chego ao Céu voando, num’hora acho mil anos.
– CHICO: Sabe, no fundo eu sou um sentimental. Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo.
– CAMÕES: (É poeta, o) amor é um fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente; é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer… Tudo passei; mas tenho tão presente a grande dor das cousas que passaram, que as magoadas iras me ensinaram a não querer já nunca ser contente.
– CHICO: (Ah, estimado poeta!) Mesmo que os romances sejam falsos… Mesmo sendo errados os amantes, seus amores serão bons… (E) se, de repente, a gente distraísse o ferro do suplício ao som de uma canção?! Então, eu te convidaria pra uma fantasia do meu violão… Eu faço uma batucada. Eu faço uma evolução. Quero ver a tristeza de parte. Quero ver o samba ferver no corpo da porta-estandarte que o meu violão vai trazer.
– CAMÕES: Eu cantei já, e agora vou chorando. Cantei; mas se alguém me pergunta quando? Não sei, que também nisso fui enganado.
– CHICO: Eu vejo a barra do dia surgindo pedindo pra gente cantar. Eu tenho tanta alegria, adiada… eu tenho um violão e nós vamos cantar. Felicidade aqui pode passar e ouvir. E se ela for do samba há de querer ficar.
♪Apesar de você amanhã há de ser outro dia. Inda pago pra ver o jardim florescer qual você não queria. Você vai amargar vendo o dia raiar sem lhe pedir licença. E eu vou morrer de rir, que esse dia há de vir, antes do que você pensa♪
– CAMÕES: Assim cantava (Chico), quando o Amor virou a roda à esperança, que corria tão ligeira que quase era invisível… Esperanças de novas alegrias… Ditoso seja aquele que somente se queixa de amorosas esquivanças; pois por elas não perde as esperanças de poder n’algum tempo ser contente.
CHICO – Foi bonita a festa, pá. Fiquei contente. Ainda guardo renitente um velho cravo para mim… Sei que há léguas a nos separar. Tanto mar, tanto mar. Sei, também, quanto é preciso, pá, navegar, navegar…
CAMÕES – enfim (Chico), sublimai vossa vitória, …, com vencer me e cativar me: fazei disto no mundo larga história.
CHICO – (Meu querido Camões) pelo prazer de chorar e pelo ‘estamos aí’. E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir. Deus lhe pague.
Fonte: Jornal do Interior/ Lúcia Barbosa