MAMÃE, POR QUE VOCÊ TÁ AZUL?
Não há facilidades no meu ato de escrever. Nem sempre fazê-lo é prazeroso, pelo contrário, às vezes é uma tarefa bem dolorosa. Narrar os padecimentos que construíram a minha condição de mulher livre, por exemplo, joga-me na lona. Nesses momentos, aos prantos pelas dores que não senti, envergonhada pela coragem que não tenho, ouço Simone de Beauvoir perguntar-me: que espaço o seu passado deixa para a sua liberdade hoje?
Não lutei. Elas lutaram! Não sofri. Elas foram torturadas! Não corri riscos. Elas desafiaram a morte! Não estive com as andorinhas que viram seu sangue tingir de vermelho as águas do rio Araguaia. Nasci e me fiz jovem numa ditadura, sem desafiá-la. Elas deram suas juventudes, seus amores, seus corpos, suas vidas pelos direitos que hoje desfruto. Assim, em nome de todas elas, não esquecerei esse passado.
Cultivo suas memórias para pedir perdão pelas minhas ausências nas horas de agonia. Para clamar expiação porque não protegi seus filhos nascidos em cativeiros, arrancados de seus braços, obrigados a testemunhar suas torturas – Mamãe por que você tá azul? – fichados como subversivos, banidos do país sob a alegação de que eram elementos perigosos e inimigos do estado com 2, 4, 6, 9 anos de idade.
Em razão de continuamente escutar Amelinha, a mamãe azul, dizer não se consolida uma democracia com cadáveres insepultos, resgato suas histórias. Ademais tenho necessidade de suplicar indulgência por não ter segurado suas mãos quando lhes induziram a abortos criminosos. Preciso implorar remissão pelas horas a que foram submetidas a estupros coletivos, acompanhados de choques, chutes, socos no estômago e mutilações. Poderia ter feito algo tão simples como reunir e entregar absorventes usados e sujos de sangue que lhes protegiam da violência sexual nas sessões de torturas, nem isso fiz. Enfim! Rogo clemência por não ter arrancado das mãos opressoras o seu corpo morto para dar-lhe um enterro digno da sua bravura.
Vocês ultrapassaram as barreiras socialmente construídas, subverteram os valores estabelecidos e isso os opressores não suportavam… não suportam. Era necessário desqualificá-las: putas comunistas! Piores que os homens! Umas loucas! Entretanto, as agressões físicas e morais tornaram mais evidentes a coragem; a lealdade de vocês ao país; a cultura democrática que as norteava e o pensamento político praticado – lutar até a morte contra governos autoritários. Esse passado eu não quero esquecer porque isso seria além de insulto às suas dores, o não reconhecimento dos processos que edificaram a minha liberdade e dos pilares que a sustenta. Não vou esquecer!
“Se algo vier a acontecer comigo, se eu aparecer morta, por acidente, assalto ou qualquer outro meio, terá sido obra dos mesmos assassinos do meu amado filho”. Zuzu Angel estilista, mãe de Stuart Angel sequestrado por agentes da repressão cujo corpo nunca foi encontrado. Zuzu morreu após seu carro ter sido encurralado e capotado à saída do Túnel Dois Irmãos, no Rio de Janeiro. ZUZU ANGEL, presente!
Grávida,19 anos, nua, presa numa cela escura com uma jiboia à solta. Levou tapas, chutes e socos durante os interrogatórios diante de pastores alemães enraivecidos e prontos para atacá-la. MÍRIAM LEITÃO, sobrevivente!
Vou morrer? – Vai, agora você vai ter que ir. – Eu quero morrer de frente. – Então vira pra cá. Dina Oliveira Teixeira, fuzilada em estado avançado de gravidez olhando nos olhos do Sargento Ivan. DINA, presente!
Torturada com seu marido, a irmã e os dois filhos. Amélia Teles levou choques no corpo inteiro e sofreu violência sexual. Seus filhos eram levados para vê-la nua, cheia de sangue e urina. Coronel Ustra foi seu torturador. AMELINHA, sobrevivente!
Morreu alvejada por 29 tiros aos 26 anos e seu corpo foi jogado na rua. Aurora Furtado foi torturada no pau-de-arara, afogada, queimada, recebeu a ‘coroa de cristo’- uma tira de aço colocada em volta da cabeça que vai sendo apertada aos poucos, para que o crânio seja esmagado e os olhos saltem para fora das órbitas. AURORA, presente!
“Cinquenta e cinco anos é pouco para eu esquecer”. Onze anos de idade, Iracema Araújo foi sequestrada com sua mãe que era a professora Lúcia. Vendadas, foram agredidas fisicamente, torturadas. A criança assistiu sua mãe ser eletrocutada, depois foi deixada numa praça agonizando, seminua. Não sabe o que fizeram com o corpo de sua genitora. LÚCIA, presente! IRACEMA, sobrevivente!
Rose Nogueira. Victória Grabois. Dulce Pandolfi. Leslie Denise Beloque. Lúcia Murat. Antônia Ribeiro Magalhães. Criméia Schmidt de Almeida. Flora Strozenberg. Dilma Rousseff… “Nós temos uma dor que jamais será apagada”.
Por Lúcia Barbosa